Há uma passagem muito conhecida do Evangelho, em que Jesus vai à província de Gadara e é abordado por um sujeito endemoninhado.
Ao ser questionado a respeito de como se chamava, o “espírito imundo” responde dizendo: “Legião é o meu nome, porque somos muitos”.
O tal demônio, portanto, era, na verdade, uma espécie de conglomerado de vários demônios.
Afinal, “legião” era um agrupamento militar romano composto por milhares de soldados.
Pois bem… A resposta que o diabo deu a Jesus poderia estar na boca de cada um de nós.
De fato, nós também “somos muitos”.
Esta é uma das descobertas mais fascinantes da Psicanálise.
Embora você se identifique com UM nome e se perceba conscientemente como UMA pessoa, essa ideia de unidade é apenas uma impressão ilusória.
Quantas vezes, por exemplo, você já não olhou para certas coisas que fez e pensou algo mais ou menos assim: “Como será que eu pude agir daquela forma?”.
Frequentemente, temos essa sensação de não nos reconhecermos em certos comportamentos e dizemos: “Eu não sei onde estava com a cabeça…”.
Sem falar nas vezes em que travamos verdadeiras guerras interiores, brigando com nossa consciência ou com certos desejos.
Mas não existe evidência maior de que o nosso eu é muito mais uma legião do que um in-divíduo do que a linguagem dos sonhos.
Uma das premissas que mais nos ajudam a interpretar sonhos é a de que as pessoas que neles aparecem muitas vezes são representações de partes de nós mesmos.
Então você sonha com um amigo te dando uma bronca, por exemplo, e ele pode muito bem estar simbolizando seu superego.
Ou você pode sonhar de repente que está começando a namorar alguém e isso estar representando seu desejo de integrar duas partes suas que estão em conflito.
A constatação de que nosso nome é Legião — porque somos muitos — nos liberta da tirania da coerência.
Queremos X, mas também podemos querer o oposto de X.
Um lado seu quer partir, outro quer ficar.
Parte da arte de viver consiste em aprender a aceitar essa inelutável ambiguidade.
Por isso, ao contrário do que muita gente imagina, a gente não faz análise para descobrir nosso verdadeiro desejo.
Porque se o Eu é Legião, nossos “verdadeiros” desejos também são muitos.
Lucas Napoli
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